sexta-feira, 28 de agosto de 2009

PODE ME CHAMAR DE VOCÊ!

quando falo de você, quando escrevo pra você, eu sôo e firmo um ele, uma ela, quando perpetro a palavra você. penetro numa atmosfera imprecisa onde voam um ela, um ele, um tu. onde se perpassam os gêneros e os sexos, sem que se tornem genéricos ou assexuados. o que vale, além do suorento sentimento das palavras ditas, grafadas, o que serve é o ludo. o que me vale as penas, o que me serve a mesa farta de carnes de aves, mamíferos, moluscos. é quando só encontra lodo em torno que se sabe se o homem realmente tem sede. vai sorver do barro o líquido e transpirar, sobrevivente, poeira. é ludo real quando trato palavras, tateio imagens, tempero ambientes, perfumo sentimentos, desfruto paladares, ouço e revelo segredos.
quando crio um você, quem sabe você é ela, quem sabe você é ele, quem sabe você é mesmo você? tu não és. porque tu é singular demais pra mim. pra nós, se você bem me entende.
mas o que me leva ao jogo, ao fogo de forjar armas temperadas, ao sopro de afiar flechas imantadas, ao logro de escudar tempestades com palavras, o que me leva ao infinito acima dos céus e ao fundo do fosso dos poços, é o poder. é poder com palavras comer um tremoço ou domar um potro. é poder discernir entre trocos e troços. é poder descobrir a ultimíssima verdade ou reaver a paleontológica farsa. mas sobretudo é poder ser você. pois quando me transmuto de um em muitos, sou o seu senhor e súdito, o desmazelado e o bem afortunado, o primeiro e único e o antepenúltimo.
quando sou você posso me amar como você nunca me amou, posso me falar coisas que você nunca pensou, posso decidir querer ser tua, sempre, e eu ser sempre teu, quando eu sou você. e não importa se a rima é rota, se a rota é certa, se é a última gota, se há mais promessas. tudo é mais que o impossível, todo amor é vencedor, seja herói ou vilão, honesto ou bandido, quando sou você.
quando sou você eu falo e escrevo tudo que eu quero ouvir, do modo que eu quero ler. escrevo e falo tudo que eu detestaria receber, do jeito mais rude que eu não quero ver. é assim quando quero ser você.
sei dos riscos ilimitados, tanto os de vida e morte quanto daqueles das sobrancelhas. sei dos deleites do paço e que algum dia posso perder o compasso e não conseguir mais traçar resmas de linhas, não entoar mais minhas cantigas, não acender com meu sopro as mesmas velhas centelhas. mas olho no seu olho, vejo uma página em branco, me sinto um deus. escravo de minha criação.
quando crio você, é a minha imagem, semelhança, perfeição.


marco/28.08.2009.

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