sábado, 26 de setembro de 2009

SACRO E SIMULACRO

"boy, you gonna carry that weight."
john lennon/paul maccartney

estou vazio. preciso de pontes, viadutos, portos, rodoviárias, rios, estradas, discos voadores, aviões, preciso provimentos, quite de primeiros socorros, uma barata, uma pulga, um gato, um cachorro, novas plantas vegetais e de novos locais. necessito de um princípio. e depois vejo como vai ficar o meio e o fim. se ficarem. por princípio quero dizer um pio inicial, um pontapé, um fogo de artifício. por meio quero dizer seio, ventre, modo de caminhar, gestança e alimentação. por fim quero dizer sonho infinito, projetos para acabar só com a morte, chegar ao limite e resseguir a toda hora. estou pleno de vazio e não me basto. careço de alôs e adeuses, de ôis e 'té logo, coisas que indicam movimento. por isso é urgente me chegarem marés, me partirem fases da lua, me emprenharem sóis, me parirem ventos. por isso é imprescindível me nascerem canções, me morrerem lágrimas, me habitarem novas cismas e cismos, viagens, visagens e vícios, novíssimas práticas, didáticas, léxicas matemáticas. estou vazio, com um cesto cheio de textos, com um gaveta repleta de letras, carregando um andor sem santos, um saco sem fundos, uma vida repleta de lucros e sortes, de prejuízos e azares, tudo mesmo coisas da vida, normais colheitas em várias estações, levo o balaio como quem equilibra o universo e a sanidade, a face clara e o adverso da saudade. quero afirmar que: vazio, quero o cio da enchentes. opaco, quero lume sacro da transcendência. sozinho, quero o calor exacerbado e contínuo de todas as gentes.

marco/23.09.2009.

ECLIPSE

Alguémquem me roçou as fronteiras, retintas cercas farpadas, remissas muralhas varejeiras, meus limites extremos de domingos a segundas-feiras, me tocou com plumas de asas de anjo, com rebites de asas de airbus. Alguémquem que eu não previamente queria, não adivinharia que viesse aqui. Mas o fato é que deu-se este acidente e por ora penso em aquilatar pormenores, possíveis prejuízos, volúveis vantagens.
Eumesmoeu não reconheço Alguémquem. Mas sei que esse sopro de estar, este marzipã de presença, aquele leve arrepiar na minha pele, agora se mostra em marca precisa: não era um querubim, não foi um avião, nem a pomba da paz aterrisou em meu vôo solo.
Foi a tua sombra, encantadamente, que ainda desliza sobre mim, me desvendou e encobriu, e depois se foi: para os seus devidos fins.


marco/21/09/2009.
NESSES TERMOS

sou o gato ou o novelo? e você?
sou sopapo ou enlevo, a linha ou retrós, a seda ou o fuso, a carga ou a carretilha?
sou a corda ou a caçamba? e você?
o nó ou o laço, o pé ou o passo, ou eu ou você? quem sabe o que é rúim ou quem sabe ruím, quem? eu ou você, meu amor ou o seu?
sou pasto ou só lastro da queimada, sou pacto ou rês desencilhada, sou o pacato cidadão ou o citadino pego num lapso e enrodilhado numa camisa de força? vou para o hospício ou vou para a forca?
sou o gato ou o rato? aquele que te lambe ou que te rói, aquele te roça ou o que emporcalha a vida deixando meus restos de fome – rasgados -, de urina – marcados -, meus restos de amor em sangues e fezes, resquícios de lavas ou neves. sou eu o tempo ou o espaço? e você?
quem é você, quem você é?
eu sei que quando eu te falo tu pensas que estou falando com outra. e que quando eu falo para outras tu julgas que estou te falando. e eu me desvairo e saio na rua sem rumo e sem lastro, sempre prestes a ter uma síncope, um infarto; mas sei que isso tudo entre nós é perfume, o odor de nossas carnes é muito mais intenso que qualquer um perfume barato, quando estamos juntos é nosso o mundo, é seu e é meu o todo do tempo e do espaço.
sou eu o camelo ou a água? e você?
sou relevo ou sou traço, o sumo ou melaço, o medo ou descaso, o cofre ou o segredo?
sou à ré ou passo a frente, e você?
saiba: sou quem origina, fonte genuína.
e lógica mínima é termos nós dois, um e outro, em nossos braços.
nesses termos.

marco/19.09.2009.

COMO EU TE DISSE ANTES...

quer me dar um conselho? entre entre meus artelhos, injeção que engesse meus pés e mãos, me deixe suspirar de alívio quando a dor decresce, me livre de todo mal quando todos de tudo se compadecem.
quer me dar um conselho? então antes me aceite vital, fatal, plural, total: como todos esses todos descomunais normais, senhoras e senhores decentes. até que se prove ao contrário. até que os nove fora convença algum otário. me inclua entre os senis e os adolescentes, entre os males de parkinson e os dos tabacos e dos alcoóis de todas as águas ardentes, se quiser me dar um conselho.
mas sobretudo me deixe livre para interpretar os seus anseios. quando disser que me quer bem, eu posso entender: te desejo; se me disser que me quer, bem eu posso entender: te desejo. mesmo quando disser que me quer, bem, eu posso atender: eu te desejo.
às vezes é só uma questão de ponto, de ponto parágrafo, de ponto e vírgula, entre vogais e consoantes.
às vezes é só a vez e a posição da esquina onde o puto do meu amor faz a vida, entre os mortais seres delirantes.

marco/21.09.2009.
ANÔNIMAMENTEAMANTE

alguém me escreve:

"Que bom que retornaste.De volta à caça,cão farejador,cheirando tapetes e cantos empoeirados,ascultando o coração da cidade.Teu sangue renovado percorre os becos,as vielas ouvem teus passos onde bêbados,mendigos e putas fazem o carnaval.Tuas mãos percorrem sensualmente a pele das coisas abandonadas,reconhecem objetos antigos que mofavam à espera.Delimita mais uma vez teu território sagrado com lágrima,suor,esperma.Afia as unhas que a briga é boa,empertiga o corpo,bicho que és.Que bom que te pertences de novo."

alguém que me acompanha alguns passos, outros deixa sem maços de mensagens, alguém que me traça os dizeres, se disfarça em textos breves. alguém que me escreve crente que é o falsário mas que deixa sua identidade explícita em seus rascunhos rápidos e lépidos. alguém que me dá um doce mas quer arrancar a minha pele. alguém que sabe que a saliva das suas palavras me hálita, me gosma, me rescende e me bebe. alguém que sabe que a mim pertence. alguém que de tanta pressa, nem os espaços após as vírgulas e pontos deixa ao texto o que merece. mas eu te entendo, meu alguém, eu te guardo e protejo como um maior bem, somente porque sei porque eu vou e porque tu sabes porque vens. eu também te pertenço, fada, maga, cã, coisa esquezilenta, fado, mago, cão, coisa que me atenta. eu te mereço e, pois, façamos nossa mesa, nosso leito, nossa rede, nossas reticências. somos um alguém e um quem selvagens e pacatos, já além das vertigens virgens, mas ainda acreditando em miragens.

marco/21.09.2009.

sábado, 19 de setembro de 2009

PRÓDIGO

é bom me receber, de novo ao lar, naquele endereço em que entregavam flores e nem só cobranças; de novo ao domicílio de onde fui para perscrutar outros domínios, charfundar lendas e lodos; é bom me ver chegar em casa: para o mesmo corpo um pouco mais envelhecido, para este corpo que ainda tem desejos, parar neste corpo disposto como pasto, ágape na mesma mesa, sorrateiro repouso do guerreiro. é bom te ver, me ver de novo, bem vindo eu a este susto e novo fôlego.
saí de mim sem saber se somente ia ou se iria retornar. saí de repente ou aos poucos fui saindo, nem sei bem, nem bem ou mal se realmente me voltei. acho que sim, acho por esse caminho das pedras muitos sins, vários nãos, tantos tontos talvezes. chego com sede e fome, cansaço e carência, vestígios de ilusões e sonhos que não eram meus mas dos meus devaneios. chego como nego chega: sem alarde e sem surpresa. mas preciso festa, necessito samba e bebidas, batuque e sorrisos, quero verter o que não era eu no que eu sempre fui, ou achava que era, ou pensava que sou: assim um encadear de palavras e versos e cantos de amor e de trabalho um pouco confusos. liberdade é me voltar a mim sem cair em si. já que não saí de férias, não saí da raia, não saí à francesa, não saí sem nada. quando vi, estava perdido numa situação precária, numa solidão ordinária, numa péssima cilada.
estou de volta ao meu antigo leito, feito peão estropiado, feito rio renovado. vim de manso e vim correndo, vim berrando e vim calado. pela calada da noite, pelo dia escancarado. estou aqui para retomar meu pulso, meu direito, meu canhoto, meu futuro e antepassado. estou em mim novamente, me fiando na vida, afiando o arado.

marco/18.09.2009

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

VIVO

Tenho imensa crença em que antes da morte ainda vou ser feliz. Não sei como será lá como for, não tenho designos, caminhos, endereços nenhuns. Não tenho nem mesmo fé, essa coisa para mim sempre enevoada de significados e dificilmente aceitável, em seus termos mais extremos e nos mais lúdicos. Meu acreditar não é místico, é sísmico: coisa que me sacode que nem saco mole que não se põe em pé, coisa que me muda de lugar a qualquer hora e a cada aurora me faz voltar à mesma janela, pé-ante-pé, para ver o sol brotar do nada, do tudo da escuridão, e florescer sorrindo em meus olhos, em meus dentes escovados e límpidos. Tenho intensa força encaminhada no senso da felicidade, por todos os meus nervos, músculos e pele se transporta essa eletricidade boa, essa inequivocada radiação de um poder que constrói, essa quase inevitável potência da beleza, essa inesgotável fonte que arde e sua e verte mais do que desejo, um destino preciso. Sou um homem que trança seus caminhos como um peregrino, sou um homem que se lança mais uma vez ao vôo, levando em si seu ninho, sou um homem prestes a redescobrir a veia por onde flui toda sentença, toda façanha, toda beleza, toda estranheza, toda infinita candura e toda incomensurável tortura, sou um ser levado a termo. Renascido, inicio a minha primeira palavra com um A. Alumbramento.

marco/14.09.2009.

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

O QUE HOUVE, O QUE HÁ, O QUE HAVERÁ, O QUE HAVIA

quem me visita não traz cerimônias mas não me ilustra as insônias, chega através de recados, nunca em corpo vivo, faz com que eu pague em dobrado suas algaravias, me faz de gato e calçado, cobra minha presença em convites abstratos mas não nem envia uma fotografia. me jaz peso morto mas quer que eu ressuscite lazarentas palavras, sentidos, sentimentos por quem me quis, por quem me queria. quem me visita sempre quer mais do que eu sou. só me imagina, já que nunca me vê de frente, de costas, deitado, sentado, de cócoras; por dentro faz que me conhece mas na verdade ou inverdade me perscruta a resposta através de uma sua pergunta: tudo bem, sim-sim eu te quero junta sempre que pudermos ser convivas entre mil comensais, minha visita, te quero viva e plena em meus sonhos etéreos, mesmo virtuais. quem me visita não se habilita a ser quem habita meu ta-ti-bi-ta-te, não quer minha casa, não quer minha vida, não quer sequer meu coração prestes a um infarte. quem me visita se apraz com signos que não sei de onde vem, ou se vieram, ou se talvez nasceram aqui mesmo: perto da minha solidão amarga, junto de meu amor confessável só à aquela mulher que amo, rente ao meu dia-a-dia de me fazer crente de tudo que sou e de que há mais o que se criar na frente, próximo da loucura e da mínima procura que é: ser feliz. quem me visita me desveste de todas as rimas, me despenteia feito ventania, cria algoritmos que me fazem desver o que havia, traz senhas mágicas para o amor que eu não conseguiria, faz caos, misérias, fraudes, mitos, paz, em demasia. quem me visita não sabe o que eu posso, sabe o que eu não possuo, sabe da minha sadia morte em vida.

marco/11.09.2009.

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

OLHO A OLHO, MANO A MANO, ALMA A ALMA

"o meu coração ateu quase acreditou na tua mão que não passou de um leve adeus."
Sueli Costa

um dia, há pouco tempo, escrevi:
tenho anjos que me enviam brisas, ventos, ciclones, cataclismos. tenho anjos que me assopram ciscos no olho, que me alopram com métodos, afazeres, textos simétricos, ricas rimas. tenho anjos que surgem e evaporam, de dentro e de fora de mim. tenho anjos. barrocos, de pau oco, anjos erês, anjos demônios, todo dia, mês a mês, signo a signo, anjos virgens e outros que me afligem pela vida inteira. tenho anjos.

hoje escrevo:
já tive anjos de guarda, arrastando asas para mim. já tive patrões, empregadas, esposas, namoradas, vilões e mecenas, cactos e alfazemas, inimigos, amizades. já tive parte com diabos, já pedi aparte entre deuses. hoje tenho uma parceria. que não me vem todo dia, que é indisciplinada, que cospe grosso do alto quando alça minhas escadarias como uma cavala. mas que faz bem. faz bem o que sabe fazer que é provocar, acarinhar com unhas ásperas minha couraça de defesas, chicotear com língua de pluma minha placenta de ofensas, sabe digladiar comigo como leal inimiga, como amiga fiel sabe que a morte é certa não para um mas para ambos, para todos nós que, em algum momento, amamos. isso sabe muito bem essa minha parceria. se dispor rês e carregar o carro da minha lenta agonia, se impor rei e esmagar com pétalas minhas raras centelhas de euforia. me veio assim feita de jade e trapo, chega sem aviso, entra sem licença, cerca os meus abismos, destrói minhas represas, cheia de majestade e andrajos, prevê o meu passado, relê a minha vida, me faz grafar na pedra do devir certezas inexatas. já tive espíritos santos de ouvido, hoje tenho meus botões, meu umbigo e uma parceria que me agrada.

marco/07.09.2009.

O AMOR DE NOVO

aquele cheiro intenso de terra surrada pela chuva forte em um dia de grande calor, quando brota o amor tem esse cheiro. um sacudimento de barco indo contra as ondas num mar encapelado, o amor quando nasce traz essas golfadas para o meu lago. um fechar os olhos e ver a luz, um abrir os olhos e ter a sensação de sonho, isso o amor faz quando surge. dentro de mim um touro raivoso que se deixa alisar, um potro novo escoiceando os ares a relinchar, um gato encurralado que arregaçou todas as unhas e agora deita pesado e cunha seu nervos numa almofada, o amor quando estréia quer mostrar ao mundo sua odisséia e requer aplausos íntimos, afagos muitos, revelações de segredos, extratos de todos os fluidos exalando seus desejos, o amor exige cuidados dedicados e imensas festas, quando se apresenta. suor frio de emoção e lágrimas quentes de prazer, levitação sobre as camas, passeamentos pelas ruas, de tudo o amor quer provar o gosto e o aroma, do musgo e da amora, da saliva e do soluço, o amor quer provar que é amor, quando se mostra. saber o sabor do estertor e o odor da convulsão, ter o tato nas entradas para as entranhas, a visão dos eleitos que vislumbram maravilhas, quer ouvir a voz dos arcanjos e os sussurros mais sutis e silabados nas bocas e ouvidos, o amor quer se nutrir de toda beleza e ânimo, quando assim emerge. cheio de si, pleno em mim, sangrado profundo, arranhado na pele, curado em apuro, batismado herege, o amor induz espetáculos de sóis e luas, estrelas e satélites, produz em meus olhos luz, em seus olhos febre, reduz a importância da vida à sua efeméride. e aquele senso de levitação, aquela emoção de vislumbrar o oculto, aquela noção do real no absurdo, aquele incontido desejo de fome e de sede, aquele caminhar sem passado, aquele desprezar o futuro, aquele exasperar o presente, tem disso um tudo aquele a quem o amor toca, quando se acerca em volta, quando se põe a frente. um cadinho para quem vê, um caldeirão para quem sente. quando vem, o amor instaura em mim, impaciente e soberana, sua extraordinária riqueza, humildemente, ao meu deleite.

marco/07.09.2009.
SUCO E MUCO

olhar no espelho e ver você: na menina dos olhos, lá está. fazer o quê? dizer que não embeleza meu rosto esta sombra decalcada nas pupilas? lembrar que é de lá que nasce a lágrima de angústia e a de tanto rir? na verdade não vim aqui para chorar. nem de pesar nem de graça. só para escovar os dentes, gengivas sangrando, baixa imunidade; respingar de colírio o glaucoma, visão central; a barba brota grisalha, as lentes dos óculos sujas como um passado infeliz, as orelhas crescendo; ser sabedor de que a verdade não existe e de que o tempo não tolera retardatários. então sim, já te vi hoje, muito bem, sem mais saudade, com tempo ruim todo mundo também dá bom dia.
o amor faltou ao labor e não mandou licença médica, nenhuma justificativa. cortar o ponto, os pulsos ou a tolerância será a maior sabedoria? fazer o quê? trabalhar dobrado, lidar duplicado em miudezas de tarefas, com a vida cicada de bem, lidar com o mal cicatrizado a sal no diário.
o amor fez falta e não mandou licença poética, nem uma onomatopéia. olhar no espelho do meio do dia e saber: só vim aqui lavar as mãos. como e bebo o que posso, carne e folhas, muco e suco, sebo e ossos, sexos e olhos, novos crus e velhos passados. urino e descomo o que é não nutritivo, me desfaço do desnecessário. satisfeito não, empanzinado, tenho muitas palavras para me livrar do amar, amém. assim seja a minha cara lavada, a minha alma enxovalhada, a palma da mão sem destino, a calma de quem está em choque, a marra de seguir falindo, indo, tarde afora, noite adentro.
amanhã o amor vai voltar, mandar aviso prévio, se suicidar em um prédio frente ao meu? a escuridão relampeja e trovoa, coisas de tempestades. fazer o quê? tapar os espelhos com lençóis e lenços, entre os quais hoje não vou dormir, amanhã meu nariz assoar. fechar os olhos.


marco/06.09.2009.